Textos
ACAMPAMENTO
Meu pai militar foi transferido para o Rio Grande do Sul. Desfez de móveis e outros trastes domésticos e despachou as malas com roupas e objetos pessoais. A cadela Jolie foi doada a uma moça. Embarquei com a família num trem. Havia uma baldeação em São Paulo para outro trem rumo ao Sul. Lá, para esperar o horário do próximo trem, fomos para a casa de um tio de minha mãe considerado excêntrico. Em minha opinião era maluco mesmo. O que mais amei foi a coleção dos discos clássicos arrumados em estantes na sala, nos quartos e em quase todas as paredes da casa.
Na varanda tinha uma rede. Fui balançar na rede. O cachorrinho chegou por trás e me tascou uma mordida na barriga da perna. Senti mais a dor de ter deixado Jolie do que a mordida na perna.
Chegou a hora do novo embarque e minha família se acomodou na cabine de passageiros.
A viagem levaria alguns poucos dias e eu me distraia apreciando a paisagem pela janela.
Fiz amizade com um menino que também viajava. Ele desembarcaria em Santa Catarina. Disse ser filho de um fabricante de fósforos. Eu ficava imaginando que trabalho daria colar nas pontas dos palitos a massinha que pegava fogo.
Minha mãe preparava mamadeiras com o auxílio de um fogareiro a álcool, uma panelinha e uma colher de pau. Eu estava encarregada de lavar a panela e para mim o maior trabalho era raspar o fundo da panela quando a minha mãe deixava o mingau queimar. Mas eu gostava do cheirinho do mingau queimado e durante muito tempo eu associava este cheiro à mudança para o Sul.
Finalmente chegamos ao destino e nos alojamos em hotel de trânsito. O quarto pequeno cheirava a mofo; as paredes eram escuras, a cama rangia e o edredom era ensebado. Minha mãe quando viu a enorme barata passeando na parede fez tal escândalo que meu pai prometeu procurar outro hotel no dia seguinte.
Em frente ao hotel havia uma pracinha. Pela manhã lá busquei minhas primeiras amizades gaúchas enquanto meu pai se apresentava no quartel para onde fora transferido. Ele voltou com a novidade de já ter uma casa para alugar. Minha mãe teve que se resignar a conviver com a barata do hotel por mais uma semana até a montagem da nova casa e a chegada das malas despachadas.
Instalamo-nos na casa, na verdade um sobrado. Ficamos na parte térrea e parte de cima moravam dois irmãos logo feitos meus grandes amigos.
Fui matriculada num colégio de freiras ao qual poderia ir a pé e lá fiz muitas amizades. No trajeto da escola adorava parar no bolicho e comprar picolé de banana e de creme holandês.
O pai dava expediente o dia todo enquanto minha mãe cuidava da casa e dos dois filhos menores. Ela começou a dar sinais de que não estava muito bem mental ou emocionalmente.
Uma das melhores amizades feitas por meu pai foi um sargento enfermeiro do Hospital Militar. Ele o orientava no trato com minha mãe. Quando minha irmã gaúcha nasceu ele auxiliou a parteira e ficou padrinho da criança.
O primeiro passeio em terras gaúchas foi conhecer as Ruínas de São Miguel das Missões. Naquela época estavam mesmo em ruínas sem o glamour do turismo dos anos mais recentes. Pude conhecer os santos-do-pau oco e morcegos. Eu quis subir na torre do antigo campanário e nos primeiros degraus fui surpreendida pelos morcegos que também surpreendidos voaram em debandada colidindo comigo; rolei alguns degraus e voltei assustada para o descampado.
Os militares gaúchos amigos de meu pai gostavam de acampar e insistiam para ele acompanhar o grupo levando nossa família. Minha mãe foi convencida e um dia fomos acampar as margens de um rio. O trajeto feito em uma caminhonete foi deslumbrante para mim. Eu me lembro de um campo gramado repleto de ameixeiras. Boa parte do meu tempo passei em cima das ameixeiras saboreando os frutos doces.
As barracas foram armadas sendo que uma era destinada a uma cozinha comunitária. Cada dia alguém ficava responsável em preparar o rancho. O rancho era composto de risoto ou arroz carreteiro, os peixes pescados no dia, uma caça ou um churrasco de carne de ovelha com vinagrete e farinha. De vez em quando serviam polenta.
A pescaria era feita com redes. Às vezes usavam umas bombas cabeças-de-negro que explodiam e matavam os peixes. Não se falava em meio ambiente, IBAMA ou IEF naquela época. Os peixes chamados cascudos não tinham escamas, eram revestidos de uma pele dura ou couro que dava um trabalhão remover. Era preciso dar um corte na cabeça do bicho para tirar o couro.
Um dia caçaram um macaco, um bugio-sem-cola como chamavam o macaco e o mataram para fazer um assado no espeto. Eu não quis provar a carne, tinha pena do bicho. Imaginava que ele deveria ter família ou filhote.
Outro dia caçaram um animal parecido com um coelho. Eu também não quis provar, era feliz com as ameixas que não precisavam de tiros ou bombas para ser colhidas e comidas. Para agradar a mãe eu aceitava polenta e uns nacos de peixe ou umas tiras de churrasco. Nestes dias de acampamento ela aparentava não ter qualquer problema de saúde e cuidava dos filhos pequenos sem reclamar das acomodações nem dos mosquitos.
Algumas semanas depois, o pai trouxe a notícia da transferência para outra cidade gaúcha.
Nova viagem de trem e mais uma saudade para somar à minha iniciante coleção: a cadela Jolie e as ameixas do acampamento gaúcho.
daguinaga
Enviado por daguinaga em 16/03/2010
Alterado em 29/08/2014