Textos
A MARIPOSA
Anoitecia. As janelas foram fechadas impedindo a entrada dos mosquitos. Ainda não era verão. O tempo estava quente. Abafado. Seria chuva?
Os jornais estavam intocados sobre o banco. A televisão estava queimada. Ninguém se interessava mais pela TV. Ninguém se importava com a previsão do tempo. Chuva ou sol. Tanto faz. A rotina é a mesma.
De repente um trovão. Seco. Ninguém reparou no relâmpago. Ninguém estava em casa. Somente eu andava de um lado para outro da casa. Inquieta. Uma inquietude crônica atrelada ao anoitecer. Nenhum outro trovão. Nem chuva. Quem sabe abrir uma fresta da janela para entrar um pouco de ar?
Os postes de iluminação da rua já estavam acesos. Lá no fundo da rua havia um restinho de sol, ou melhor, uma vermelhidão. Ninguém passava na rua. Nenhum carro. Nenhuma bicicleta. Nenhuma carroça. Um cachorro latia na vizinhança. Um galo cocoricava. Alguém martelava uma parede.
Resolvi abrir o livro de contos e dar continuidade ao que estava lendo. Desliguei o som do telefone e me acomodei na poltrona após acender a lâmpada. Absorvida pela leitura não percebi o negrume da noite. Pela janela entreaberta ela entrou. Ficou voejando pela sala batendo nas paredes até vir de encontro a mim.
Fechei o livro para melhor observar o movimento daquela visita incômoda. Ela decidiu voejar em torno da lâmpada e eu decidi apagar a luz. Silêncio. Senti que ela pousou em meu ombro. Talvez atordoada. Talvez indecisa. Com um pequeno movimento do braço tornei a acender a lâmpada. Silêncio. Ela não estava mais pousada em meu ombro. Olhei em torno da poltrona e não a vi. Esperei uns momentos com o livro entreaberto.
Retomei a leitura interrompida e mergulhei na narrativa. Não me lembro quanto tempo se passou até ela voltar a voejar em torno da lâmpada. Fiquei observando o que me pareceu uma luta. Parecia que ela queria entrar na lâmpada. Tornei a apagar a luz e ela se acalmou.
Levantei-me no escuro e acendi a lâmpada da cozinha. Esperei que ela voasse para lá. Espera em vão. Silêncio. Acendi então todas as lâmpadas da luminária da sala. Um lustre antigo com doze lâmpadas incandescentes. Lustre pouco usado por economia de energia. As lâmpadas da casa foram substituídas por lâmpadas de luz fria, apenas o lustre foi poupado pela beleza do efeito de suas doze lâmpadas acesas em dias de festas raras. Ela se recusou a voar em torno. Estaria exausta ou morta?
Voltei ao livro e à poltrona para recomeçar a leitura. Reacendi a lâmpada. E lá estava ela de asas abertas repousando sobre o pedestal. Parecia um recorte de fita de veludo cor de terra com alguns minúsculos pontos pretos. Ela me pareceu não ter corpo, apenas asas. Toquei de leve em suas asas. Ela não se moveu. Devia estar descansando.
Abri novamente o livro e me recostei para a leitura. Não consegui me concentrar. De vez em quando espiava verificando se ela ainda estaria pousada. E assim o tempo foi passando.
Apaguei a luz e fui à cozinha para comer. Acendi a lâmpada. Enquanto decidia o que pegar ela surgiu rápida e entrou na geladeira. Maldosamente fechei a porta. Eu me lembrei em seguida que quando a porta se fecha a luz interna da geladeira se apaga. Tornei a abrir a porta para que ela escapasse. Tão rápida como quando entrou ela saiu voando em direção à luz da cozinha.
Deixei a lâmpada acesa e voltei à sala sem ter comido coisa alguma. Eu me sentei na poltrona e peguei novamente o livro de contos. Mantive a luz apagada e o livro fechado. Fechei os olhos e adormeci.
Acordei e senti minhas costas envoltas numa espécie de capa. Eu não sentia meus braços. Tentava um movimento e a capa se movia. Eu não estava mais sentada no sofá e o livro estava jogado no chão. Eu também estava deitada no chão. Apenas a iluminação da rua entrando pela fresta da janela clareava um pouco a penumbra da sala.
Tentei me levantar para acender a lâmpada sem os braços e as mãos como apoio. Ao mover os ombros a capa se moveu e se abriu em leque. Percebi então que a imensa capa era na verdade um par de asas. Sem pânico! Pensei alto. Estou sonhando. Calma!
Tentei me arrastar pelo chão e senti as pernas. Seis pernas! Longas pernas! Tentei, apoiando-me nestas pernas, me levantar do chão e, ao mesmo tempo, senti na cabeça algo que se movia. Eu não podia usar as mãos e verificar o que se movia na minha cabeça. Silêncio! Terrível silêncio ou eu ficara surda?
Consegui dar uns passos, as pernas tremiam, meu corpo parecia desabar sobre o peso da capa, ou melhor, das asas. Movimentei os ombros, ou o que pensei serem meus velhos ombros. As asas se agitaram levemente. Pensei que poderia estender as asas como se fossem meus braços e assim fiz e as asas se abriram. Agitei os braços/asas levemente e depois aumentei o movimento.
Tentei andar e agitar os braços/asas simultaneamente. Fiz um grande esforço e senti que me elevava no ar. Ao parar de agitar as asas eu caí com as pernas dobradas. Não senti dor.
Novamente me ergui e agitei as asas com muita força e me elevei no espaço. Não enxergava nada. Bati com a cabeça na parede. Não senti dor. Agitei as asas para me manter no ar e percebi que o que eu tinha na cabeça eram duas antenas de inseto que se moviam rapidamente. Consegui efetuar vôos em círculos e fui atraída por uma luz. Eu havia deixado a luz da cozinha acesa.
Voei em direção à luz e bati a cabeça na lâmpada inúmeras vezes. Senti uma vertigem e caí sobre a pia dentro de uma xícara com restos de café. Eu me debatia dentro da xícara. As asas estavam empapadas do líquido. Perdi as forças. Desisti de lutar. Desisti de viver.
Acordei. A sala estava escura. Um pouco de luz vinha da cozinha pela fresta da porta fechada por algum vento. Um pouco atordoada eu me levantei da poltrona. Senti minhas mãos e meus braços, passei as mãos pelas pernas e pela cabeça. As asas desapareceram.
Que sonho! Exclamei. Coloquei o livro sobre a mesa e fui para a cozinha. Sentia fome. Na pia estava a louça usada e os talheres. Pensei em lavar tudo antes de preparar algo para comer. Ao pegar uma xícara com restos de café deparei com a mariposa morta. Senti um arrepio pelo corpo. Peguei a xícara e despejei o conteúdo na lixeira. Apaguei a luz da cozinha.
Peguei a bolsa e sai para fazer o lanche na padaria da esquina. Em torno da luz do poste as mariposas voejavam. Parei. Eu também fui atraída pela luz e voei.
daguinaga
Enviado por daguinaga em 22/02/2010
Alterado em 29/08/2014